A Raquel Gralheiro será uma ironista que trabalha num certo limiar do gosto para problematizar a relação da arte com o decorativo. As suas telas, excessivas e provocadoras, são sempre o modo de representar a figura como elemento a contrastar com um sem número de padrões, como alguém vivendo no papel de parede, na estampa do sofá, no cartaz. A ideia de excesso, pelo infinito dos pormenores e pela profusão cromática, é fulcral na interpretação do pendor crítico que caracteriza o que faz esta pintora. A figura não está simplesmente aposta a um pano de fundo, ela está em competição, como uma figura também em demasia, uma derivação ou emanação da própria envolvente, como se fosse um resultado da euforia decorativa. Acaba por funcionar como uma crítica clara à objectificação do indivíduo, à objectificação da mulher, implicando-a directamente com a questão da pose superficial e do adorno. A mulher está muito para lá do expectável, está sob camadas e camadas de aculturação que a mascaram e criam um complexo significado no que ainda pode revelar de natural. Normalmente fascinada pela figura da mulher, o que Raquel Gralheiro faz é uma exploração extrema do corpo e do imaginário femininos enquanto reduto de desejo e de sofisticação. Parece aludir ao luxo, pela invariável ideia de requinte, como alude fatalmente também ao erotismo, conferindo poder às figuras, definindo-lhes uma personalidade muito específica que lidará com estereótipos arreigados na sociedade desde sempre. Tudo isto radica numa clara utilização dos clichés de gosto de que a comunicação contemporânea abusa. A mulher enquanto instrumento publicitário, a mulher como modo de apelar aos sentidos e subjugar o espectador, uma mulher largamente enfraquecida pelo que mais lhe confere distinção e, de certo modo, poder. A mulher de um modo redutor. É curioso como a auscultação dos limites do gosto pode passar tão perto do irresistível das figuras. Quanto mais perfeitas para suscitar o desejo, mais perto ficam de se destituírem de equilíbrio estético, entrando nesse território do exagero ou vulgaridade. O trabalho de Raquel Gralheiro é uma longa tese sobre a fronteira entre a arte e o choque, encontrando invariavelmente num modo de provocação o seu maior objectivo. Entre a infinitude de cores e de padrões, a mulher é apresentada imersa num romantismo tão adocicado quanto instigador, tão perto de ser adolescente quanto fantasioso com a sensualidade. Lascivo. Os quadros de Raquel Gralheiro parecem vir do tempo dos folhetins de meninas muito populares há décadas. Poderiam ser estudos para capas desses livros que se vendiam abundantemente em bancas de revistas. Cada quadro acaba por ser um apontamento narrativo que nos conta acerca da esperança de uma mulher encontrar um determinado príncipe encantado, marcando tudo pelo impulso emotivo, mostrando corações como símbolo máximo da ansiedade passional. Correndo o risco de não encontrar príncipes encantados a partir de animais que não são sapos, a mulher parece assumir a ideia do desastre entre sexos, o difícil entendimento, a ingrata procura para nada encontrar. A mulher apresenta-se como aparentemente irresistível e, no entanto, sozinha, tal fosse uma condenação existencial, uma solidão intransponível que se cria por definição.
Penso na ideia de mulheres que vivem no papel de parede porque penso que, em última análise, se reconduzem ao ofício de adorno como tudo o resto no quadro. Adornam as suas próprias emoções, são puras ilustrações desse romantismo de folhetim que, em desuso e sempre onírico, as afasta da realidade. Não são mulheres, são personagens impossíveis, desde logo impossíveis de alcançar, e surgem na imagem como referências ideais, arquétipos agora revistos numa roupagem contemporânea. Se elas gostam e gostam de quem, talvez apenas às paredes o confessem. Valter Hugo Mãe